O tempo é um caminho que a pessoa toma segundo as suas próprias
aspirações. Muitos procuram caminhar pela vida como numa lenta carroça, outros
fazem a sua jornada como num trem, mas uns raros tomam o seu destino como num
avião -o que sempre demanda mais esforço, consagração e sacrifícios nesta senda
dotada de uma “superior tecnologia” ou uma especialização nos conhecimentos,
mas que também lhes permite ir mais longe dentro dos limites naturais da
própria vida humana.1
Os Altos Caminhos da Iniciação são também naturalmente os mais exigentes e seletivos. Aquele que logra superar o Umbral da Cruz pode se deparar ainda com um longo período de padecimentos probatórios. Mesmo para superar este Umbral é necessária uma preparação precoce e exemplar, tal como se realiza na Via dos Bodhisatwas de Serviço na Terra. Para isto cabe tomar a Via Rápida da iniciação, dentro do cronograma de Shambhala, também chamada de Caminho do Raio (literalmente: Vajrayana) da Árvore Sefirótica da Cabala, a fim de conseguir sobreviver às provações e ainda ter energias e tempo suficiente para habilitar-se a avançar para uma nova roda do tempo ou adentrar em um novo ciclo de iniciações maiores, as quais também podem estar sujeitas a esforços e padecimentos, caso a pessoa se decide por seguir atuando no planeta. É preciso compreender então que os grandes Iniciados são acima de tudo sobreviventes de provações maiores, e subsistem apenas em função de novas energias a que tem acesso, sem garantias porém que isto lhes dará uma completa liberdade, ainda que o seu aperfeiçoamento sempre possa amentar as suas chances.
Numa de suas obras mais luminosas, o grande Ibn Arabi postula com clareza as provações que se acham no caminho do aspirante avançado:
“É imprescindível a todo ser dotado de inteligência saber que a viagem está repleta de penalidades, privações, provas e desgraças, que é um contínuo superar perigos e temores imensos, por isto é impensável pensar encontrar durante ela qualquer tipo de bem estar, segurança ou prazer: as águas são de sabor alterável e os ventos seguem direções opostas.” (“O Tratado das Luzes” ou “O Livro da Viagem Noturna”)
Com efeito, o tema da renúncia ao nirvana também está presente desde as raízes na tradição sufi. A exaltada mestra Rabia de Baçorá (acima) já pregava a dupla renúncia em seus cantos e mensagens. Um dos símbolos mais comuns das tarikas ou confrarias é o duplo-machado em Cruz, à direita, e cuja origem se confunde com as dinastias místicas da Pérsia ou com o próprio Império Otomano, para assinalar o corte de desejos tanto terrenos quanto celestiais, porque Allah está ainda acima de tudo isto...
O Bodhisatwa é pois alguém que avançou de forma resoluta independente das penas e sofrimentos inerentes à grande senda sacrificada.
O que representa então para o Bodhisatwa este “permanecer no samsara” –ao lado de toda a carga de sofrimentos de diversas índoles a que o Mestre se sujeita? Significa sujeitar-se a uma redução de consciência anímica e de energia pessoal, compensada de certa forma por novas conquistas e capacidades. São seres que suportaram grandes provações e vieram do outro lado com grandes conquistas, ao mesmo tempo que jamais retornam de todo, formando por isso -e idealmente falando- o chamado Governo Oculto do Mundo. Se este ideal em algum momento chega se concretizar, isso já não depende apenas deles, e sim daqueles que estão do lado de cá das coisas.
Seria importante analizar
aqui o simbolismo da cruz -especialmente a chamada Cruz latina- de uma forma
mais ampla. Esta forma minimalista pode aludir a muitas questões, e
esotericamente ela remete a realidades complexas como a do caduceu. Contudo,
enquanto processo podemos partir também das próprias questões probatórias que
podem resultar na ativação final e completa dos sistemas esotéricos. Esta Cruz
corresponde pois ao sistema nervoso central e também a esforços que possam
induzir ao seu trabalho superior. Por extensão abarca também o complexo
muscular adjacente envolvido nas crises iniciáticas.
A trave vertical tem relação naturalmente com os
Chakras e também com os órgãos centrais e a própria coluna vertebral. A trave horizontal porém pode comporta um
simbolismo fisiológico próprio, e muito significativo através das próprias asas
do caduceu. É certo que estas asas têm relação primária com o próprio chakra
Ajna, porém aqui queremos estender esse simbolismo a uma fisiologia e a um
simbolismo paralelo relacionado às asas místicas dos chamados Chakras das
omoplatas, relacionados às asas espirituais. Sabemos que esta região é particularmente
complicada para concentrar tensões que podem comprometer o complexo nuclear da
garganta e o cerebral.
Quando este contexto fica muito comprometido nas
provas da iniciação é como se o iniciado tivesse as suas asas podadas e daí
resulta a queda dos anjos. Esta sensível queda na matéria pode ser sentida
então como uma desconexão aparente com os mundos espirituais, donde as palavras
de Jesus na cruz “Pai, porque me abandonaste?!” A mesma situação estaria
contudo presente também na expressão “avatara” enquanto descenso de uma energia
superior.
Tal energia é então evocada pelo iniciado para enfrentar os desafios da provação da Cruz, e mesmo alcançando uma liberação inicial que o livra da morte, através de uma iluminação superior, o processo completo de recuperação pode tardar anos ou até ser em muitos casos mesmo vitalício. Esta camisa de força ou este sarcófago espiritual como que imobiliza o iniciado qual uma múmia e ele deve trazer então sobre si as forças vivas da ressurreição, a fim de se safar do poderoso estrangulamento físico e energético a que resulta ficar submetido então.
Parece que como as pessoas não fazem ideia
do preço que as coisas têm no mundo espiritual, elas acabam negligenciando a
face humana dos mestres, achando que tudo o que é humano neles deve
desaparecer, quando na verdade não é assim que as coisas acontecem. Um iniciado
não perde coisas, senão algumas debilidades maiores, e adquire coisas novas.
São também pessoas marcadas pelas batalhas que atravessaram, com conquistas notáveis mas também com cicatrizes na alma e também através do corpo. Naturalmente aqui também vem em à luz o mito de Prometeu, que precisa pagar um preço por trazer o fogo dos deuses aos homens –o preço de ficar acorrentado a sua própria rocha, ou de seguir padecendo males físicos desafiadores de toda a natureza, com a sensação de que nada que se faça será suficiente para alcançar uma libertação... Com efeito subsistir no mundo carregando o fardo das provações é um destino comum dos Altos Iniciados, mas tal coisa de certa forma também lhes resulta uma proteção.
É importante lembrar que Prometeu é nisto também um criador. A lenda greco-romana o apresenta como o responsável por moldar o homem do barro. E na versão de Esopo esta argila teria sido molhada com lágrima ao invés de água, para depois Atena lhe insuflar a vida, abaixo, certamente no sentido do valor e da sabedoria.
Prometeu pode disseminar a
luz porque teve a acesso a ela e logo se empoderou o suficiente para
distribuí-la. Venceu muitas batalhas e pode apresentar ao mundo o fruto das
suas conquistas. O simples fato de alguém suportar a contínuas dores sobre-humana
sem se destruir de todo de algum modo, já representa por si só algo excepcional
–e não raro tais seres são para isto treinados desde o seu próprio nascimento. De
modo que neste caso apenas não se pensa nos termos de um “final feliz”, por que
estas seriam categorias que tais seres estivessem mais interessados mesmo é em
superá-las...
Existe uma lenda medieval
pela qual o Cristo por compaixão contraiu todas as doenças do mundo para também
aprender a curar todas elas. Descontado a “licença poética” do mito
(onde o exagero tem sempre uma função didática), a ideia subjacente soa
bastante realista do trabalho dos avatares “expiatórios” da dimensão de Jesus,
que corresponde aos Bodhisatwas do Budismo. Existe uma versão popular do
Bodhisatwa com mil mãos destinadas a oferecer todo o tipo de auxílio possível
que a humanidade necessite, como um símbolo também de pura doação, além de
fazer alusão direta ao chakra de mil pétalas da coroa (ou Sahasrara) que
desperta nesta sétima iniciação.
O que me lembrava uma situação que Castaneda descreveu sobre um nagual –que é o nome dos mestres toltecas- que conseguiu sobreviver a uma enfermidade fatal tornando-se um iniciado, porém jamais curando-se de todo. Também é conhecida a história do grande curador que não pode curar a si mesmo. Na verdade, por qualquer razão ele apenas não conseguiria alcançar a sua cura completa. Se ele é realmente um curador, é porque terá desenvolvido já grandes habilidades.
Se observarmos as grandes
biografias espirituais, veremos que nada ali surgiu pronto, sendo -pelo
contrário- o resultado de uma sequência de estímulos e de esforços que, na
verdade, também terminam por se revelar crescentes no decurso da vida, posto
que um degrau deve sempre levar até outro.
A grande verdade é que
somente uma preparação criteriosa, capacita a pessoa para uma jornada
espiritual completa, a qual inclui não apenas o progresso na senda, como também
a sua conclusão naquilo que podemos definir como yug, a unidade final
através da Iluminação espiritual.
Eis que vivemos
tempos em que o preconceito e o amadorismo predominam no campo da
Espiritualidade. Contudo, apenas quando nos dedicamos realmente às coisas, sem
ilusões ou escapismos, podemos conhecer o seu verdadeiro custo e, naturalmente,
também as suas conquistas, como coisas reais e permanentes.
Para tudo isto cabe pois
adotar precocemente na vida, e na condição de renunciante espiritual, as
medidas devidas a todo o principiante sincero que deseja avançar célere e
seguramente na senda, como passar alguns anos num monastério e entregar os seus
“melhores anos” ao próprio caminho espiritual. Com isto se acata ademais uma
das grandes premissas do caminho espiritual, apregoada também nos Evangelhos,
que é viver sem se preocupar com o dia de amanhã.
1. Sobre isto muitas escolas até concordariam; aquilo que
realmente se discute seria antes em relação às grandes massas, se elas
realmente estão indo a qualquer lugar ou se estão simplesmente estagnadas.
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