Raramente se fala sobre o filho que teve o Buda com Yasodhara, apesar do tema ser de amplo conhecimento. Passado tanto tempo dos eventos em questão, pouco se saberia realmente como tudo sucedeu. Neste estudo tampouco iremos tratar muito deste filho em si (ou filha segundo algumas versões), pois sua personalidade jamais adquiriu verdadeira relevância própria, e sim das circunstâncias em que nasceu, nos termos dos usos e costumes da época ou mesmo na sua ausência, tal como o que isto pode haver significado para o príncipe Sidarta, determinando de todo modo o destino da criança e em parte também o de seu jovem pai.
O tema da renúncia do Buda suscita fortes tabus na sociedade e tem inspirado interpretações nem sempre fidedignas. Apesar das circunstâncias do nascimento do filho do Buda seguido do divórcio poderem parecer meramente um triste incidente, tudo isto integraria na verdade um quadro bastante mais complexo envolvendo por um lado grandes confabulações para enredar Sidarta nas teias mundanas, mas servindo também de testemunho sobre a determinação inabalável de Gautama em perseguir o seu verdadeiro destino, a despeito de todos os desafios e tentações que possam aparecer em seu caminho, mesmo os instintos mais poderosos que possam existir na humanidade como são aqueles que envolvem os filhos.
O presente tema envolve portanto muito mais os alicerces morais da missão dos Budas do que propriamente as suas realizações espirituais, desvelando o permanente foco de tensões existentes entre a moral comum e a ética profunda da verdadeira espiritualidade.
O presente estudo oportuniza tratar de aspectos importantes desconhecidos da biografia do Buda histórico, projetando várias luzes sobre episódios todavia obscuros da vida de Gautama. Informaremos ademais sobre a existência da existência de versões biográficas distintas no mundo oriental com certa divulgação na mídia mundial.
Poderia até parecer muito difícil reconstituir os detalhes destes acontecimentos passados mais de vinte e cinco séculos, e no entanto é possível analisar, comparar e sintetizar informações. Novos dados têm sido levantados com o avanço das pesquisas históricas, e além disto as pessoas nunca mudam muito na sua essência no final das contas, por mais que os costumes possam se transformar externamente.
Este estudo tem como objetivo primeiro lançar luz sobre a Biografia oculta do Buda Gautama e, por extensão, dos Budas em geral, uma vez que vários são os acontecimentos comuns entre as Biografias avatáricas. Estes pontos em comum não representam exatamente “plágios” como por vezes se quer imaginar, porque o principal título do Buda que é Tathagatha, significando “Aquele que é como o anterior”. Esta similitude com efeito pode alcançar até mesmo detalhes, simplesmente porque a própria humanidade segue padrões recorrentes de conduta, e a espiritualidade também determina certos padrões para colocar os seus mecanismos em movimento.
A manifestação do novo Buda Maitreya, permite projetar uma luz definitiva sobre muitas questões todavia obscuras, tornando possível rever com muita fidelidade praticamente todo o ocorrido então.
1. O Reino
É da tradição afirmar que Sudodana fora rei e Sidarta um príncipe. Estudos contemporâneos demonstram porém que a condição principesca de Sidarta não passa de um mito criado por seus seguidores para impactar melhor a opinião pública a respeito da sua condição de vida.
Seu pai teria sido apenas a liderança de um clã do Sul do Nepal, chamado Sakya, subordinado porém a verdadeiros Reinos da época centralizados na Índia. E na verdade Sidarta foi apenas o primogênito do Patriarca, recaindo sobre ele então as expectativas da sucessão.
Sudodana vinha de uma casa humilde e desejava agradar a sua esposa Maya a quem muito amava e admirava. Maya era uma mulher culta que recebera uma educação nobre. No entanto aceitara abdicar de uma projeção social para apoiar os interesses econômicos do esposo, a fim de organizarem o seu lar e começarem a ter os seus filhos que Sudodana desejava, uma empresa que tardará não menos do que oito anos de esforços.
Os pais de Sidarta estavam pois obcecados com a ideia da estabilidade e da sucessão, para não perderem os privilégios de que gozavam diante da Coroa e contra os seus rivais na região. Desnecessário dizer que neste cenário arrivista financeiro, a vontade dos filhos naturalmente encontra pouco espaço.
Uma profecia porém ameaçou os planos de Sudodana, ao mesmo tempo em que exaltou as suas esperanças. Conta-se que depois que Sidarta nasceu, um sábio ancião foi visitar o bebê, o qual surpreende o sábio ao colocar o seu pequeno pé na cabeça do ancião. Sudhodana interpretou aquilo como um sinal de soberania do pequeno Sidarta. Talvez com isto o sábio tenha resolvido deixar uma mensagem para o soberano, demonstrando que nem tudo está assim tão sob o seu controle como gostaria de imaginar.
Pegando o pezinho do bebê, Asita declara ver nele os sinais sagrados de um Buda; ajoelhoa-se e faz uma reverência ao pequeno anunciando-lhe o futuro glorioso de um grande rei. No entanto declara não saber se Gautama seria um rei temporal ou um rei espiritual. Tudo iria depender de Sidarta não ter conhecimento de sofrimentos no mundo.
Sudodana viu nesta profecia tanto uma oportunidade quanto uma ameaça. Tudo deveria ser feito portanto para direcionar as coisas para onde ele achava dever. A verdadeira intenção de Asita era admoestar Sudodana a cuidar bem de todos aqueles que estavam sob o seu comando. No entanto o nobre rei preferiu optar por alienar o filho dos problemas do mundo.
O jovem Gautama já tinha atravessado muitas dificuldades em sua vida familiar, e até por isto tinha a tendência de aspirar pela paz da vida espiritual. Sudhodana não era o que se poderia chamar de um homem esclarecido, e seu lar um local de tensões e de conflitos. A rainha Maya até tinha uma boa índole, mas também carregava os seus problemas pessoais e era muito influenciada pelo esposo.
Não obstante, talvez o destino já estivesse traçado então. O teor real que envolve a família de Sudodana seria na verdade bem mais simbólico e espiritual, uma vez que sua região integrava aspectos de geografia sagrada e de astrologia espiritual tradicionais em relação ao nascimento dos budas e avatares. É por esta razão que os mitos orientais associam a vinda do Kalki Avatar -que corresponde ao mesmo Maitreya- ao reino de Shambhala.
2. O casamento
Vimos que quando Gautama nasceu, profecias foram feitas por videntes sobre o seu eventual destino espiritual. Isto porém preocupou seu pai, o rei Sudodana, quem tinha outros planos para o seu primogênito. O severo rei temia que o príncipe se aproximasse de qualquer coisa que pudesse despertar a sua vocação espiritual, vindo a criar então um ambiente artificial de perfeita felicidade à sua volta. Aconteceu também que, segundo reza a tradição, “quando chegou a idade de 16 anos, seu pai arranjou-lhe um casamento com uma prima da mesma idade chamada Yasodhara”, uma vez que nesta altura Gautama já começava a manifestar sinais da sua vocação espiritual.
Segundo “fontes internas”, Gautama até manifestara precocemente as suas inclinações espirituais, acendendo o alerta no seu pai que passa a fazer de tudo para tentar redirecioná-lo para os seus próprios interesses.
Um casamento com alguém da mesma idade não é ruim em si mesmo, porém tampouco seria habitual na Índia, onde os homens costumam ser mais velhos. Como regra os jovens casais são prometidos entre si precocemente, porém apenas mais tarde é que se casam realmente. Na tradição social da Índia os jovens dwijas ou “duas vezes nascidos” são inicialmente destinados para ashrams a fim de estudar e receber treinamento espiritual, para depois sim casarem-se. As meninas seguem porém em casa recebendo treinamentos domésticos até se casarem, quando o esposo assume o papel de guru e de sacerdote doméstico.
De modo que aos homens sempre foram dadas maiores oportunidades de viver a sua liberdade e acumular experiências, e sobretudo desenvolver as etapas-de-vida regulares da sociedade védica, como prova da sua condição de nobreza espiritual, pois de outra forma terminariam equiparando-se aos sudras ou servidores. Deste modo, em termos objetivos na educação de Gautama não foi respeitado o primeiro ashrama ou etapa-de-vida de Brahmacharya ou de estudante casto ao qual todo hindu de casta superior tem direito, com medo de que desta forma Sidarta pudesse sentir a sua vocação espiritual despertar e assim passar a dedicar-se exclusivamente às coisas do espírito, quiçá jamais vindo a casar-se e menos ainda a assumir outras responsabilidades “do interesse do reino”. No entanto, consta que mesmo assim a vocação de Sidarta o premia na direção da espiritualidade, a partir dos inevitáveis contatos que a família tinha com a religião (aos quais muito desagradavam Sudodana) e também através de parentes religiosos como eram os próprios avós, que por vezes contavam histórias de religião para o pequeno Sidarta e até lhe haviam presenteado livros religioso sem que os pais de Sidarta soubesse.
Se Gautama fosse mesmo casado com a mesma idade com que se costuma casar as meninas na Índia, que é na adolescência e até na infância, esta atitude selaria de todo modo uma tripla humilhação a Sidarta, a saber: enquanto ser humano, enquanto homem e enquanto nobre.
São famosos na Índia os tais “matrimônios arranjados” pelos pais dos jovens, o que por vezes já pode trazer bastante tristeza, porém neste caso as coisas seriam levadas um tanto além. De certa forma, Sidarta teria sido induzido pela própria família a envolver-se com a prima, pois seus pais teriam apoiado as intenções da menina de aproximar-se de Gautama, trazendo-a regularmente para dentro do ambiente familiar de forma inusual. Como parente que era, Yasodhara já tinha familiaridade com a casa. Bastou então aos pais de Sidarta incrementarem o seu acesso e finalmente arranjarem o casamento, quiçá até mesmo a partir de “fatos consumados” para não poder haver contestação legal ou moral, como de fato parece haver acontecido. Tal conspiração doméstica -da qual a Rainha Maya não tinha todavia muita noção-, integrava e estava no cerne dos grandes esforços de Sudodana de alienar Gautama das realidades do mundo.
Consta que o futuro Buda teria inclusive pedido várias vezes para a menina se afastar dele, porque ele desejava preservar a sua castidade. Apesar de ser um homem virgem, Sidarta acreditava no celibato por fé própria e assim desejava permanecer. Porém a menina sempre encontrava a porta aberta para retornar, apenas porque a família assim o queria. Ela começou a ser convidada até mesmo aos passeios familiares, incluindo acampamentos e viagens, cuja frequência estranhamente aumentou no período.
O assédio que a menina exercia sobre Sidarta era torturante, não faltando sequer chantagens emocionais. Sidarta infelizmente não tinha malícia suficiente para suspeitar de algum ardil secreto contra a sua latente vocação espiritual. Este seria afinal um comportamento de todo oposto ao normal, quando os pais tratam de zelar pela inocência dos filhos até a hora certa.
A certa altura Sidarta havia tido um grande despertar espiritual, e a partir dali se tornara um jovem extremamente feliz e eufórico com estas revelações em sua vida. Estes dias ficariam guardados na sua memória como uma espécie de paraíso perdido. Quando ele finalmente foi levado a unir-se à jovem que o assediava, passou a sentir-se um verdadeiro caído, sofrendo de confusão e sentimento de culpa. E quando a jovem engravidou então -o que nada tardaria a acontecer-, ele nem por um momento pensou em outra coisa que não assumir a situação e casar. No entanto todos os seus esforços foram malogrados, e o divórcio tornou-se inevitável.
Alertado por amigos de que poderia estar dando um passo a falso, Gautama chega a declarar a Sudhodana não desejar mais casar. Porém este responde que já havia se comprometido com a família de Yashodara e que portanto a sua palavra deveria ser mantida. Sudhodana realmente desejava atar Sidarta através do casamento, independentemente de qualquer coisa mais.
3. O Nascimento
As cronologias que cercam as etapas da vida do Buda são muitas vezes incertas, dúbias e sobretudo ilógicas e polêmicas. As Biografia correntes afirmam que o filho de Gautama e Yasodhara nasceu quando eles tinham 28 anos de idade. Isto significaria que eles teriam esperado nada menos do que doze anos para ter Rahula, o que soa completamente absurdo.
É totalmente ilógico Gautama não procriar por doze anos quando tentaram lhe prometer uma vida de prazeres e satisfações. Como também é pueril pretender que um homem permaneça quase trinta anos na absoluta ignorância das realidades negativas da vida. Todo o cenário chega a ser absurdo em suas contradições: Gautama esperaria doze anos para ter um filho, e quando este finalmente nasce o pai decide abandoná-lo. Chega a sugerir que Sidarta estaria meramente fugindo da sua responsabilidade, o que não deve porém se imaginar.
Felizmente também existem biografias budistas alternativas, segundo as quais o príncipe Sidarta na verdade deixou a sua casa aos dezoito anos de idade, o que já faz todo o sentido quando se fala que Rahula tinha apenas um ano quando seu pai saiu de casa, uma vez que nascera quando seus jovens pais recém eram ainda adolescentes. A versão da biografia do Buda comunicada na obra de Ikeda “O Buda Vivo” surge como uma espécie de versão alternativa e esotérica remanescente através dos tempos.
Tudo isto significa também que o futuro Buda foi cruelmente envolvido numa trama doméstica de compromissos morais e sociais, apenas para impedi-lo de pensar mais seriamente em espiritualidade. Para sinalizar o simbolismo do propósito nocivo deste nascimento, o nome Rahula significa "amarras". Os pais de Gautama desejaram meramente amarrá-lo a compromissos através do nascimento de filhos, pois julgavam que chegado a este ponto o jovem já não teria coragem de pensar em voltar atrás, uma vez que o próprio amor paterno falaria mais alto, selando assim o seu destino para sempre.
Contudo o destino aguardava outros caminhos para Gautama. Para a mentalidade laica certas atitudes dos iniciados podem soar chocantes. Apesar de ser recitado por muitos, raros são aqueles que realmente respeitam o Primeiro Mandamento de “amar a Deus sobre todas as coisas” e até consideram tal atitude incompreensível. No entanto, esta situação é comum nas religiões, e não outra coisa é que foi retratado no símbolo da ameaça de Abrahão de sacrificar o seu próprio filho. Para amenizar as coisas, alguns biógrafos do Buda trataram de postergar as suas iniciativas espirituais, gerando não obstante várias incoerências lógicas.
Após o nascimento de Rahula sua mãe Yasodhara torna-se uma criatura difícil de conviver. A menina não apenas era muito jovem e imatura como também possuía uma personalidade volúvel e inconstante, sentindo-se contudo apoiada pelos pais de Sidarta. Ela também começou ser influenciada pelos ambientes profanos a que frequentava em seus estudos por incentivo dos seus pais, trazendo para dentro do lar de Gautama energias bastante vulgares e negativas. Vendo instalar-se uma crise na sua jovem família, Sidarta solicita aos seus sogros apenas um ano de jubileu, para ele e Yasodhara irem com Rahula viver numa casa de campo a fim de que pudessem harmonizar-se entre si, longe das influências mundanas. Não obstante esta medida também lhes foi negada.
Acontece que os pais de Yasodhara também ficaram muito decepcionados com ela e estavam determinados que ela tivesse uma profissão e não fosse influenciada por Sidarta. Com efeito ao contrário dos pais de Sidarta, eles sequer haviam aprovado o casamento de sua filha. Os pais de Yasodhara simplesmente não estavam interessados naquele casamento que ameaçava tornar a sua filha também desinteressada pelo mundo.
E com isto Sidarta já pouco pode fazer do que preparar o seu divórcio com Yasodhara. Seus mundos eram definitivamente irreconciliáveis. Com o divórcio Yashodhara também se apartara da casa de Sudodana, passando a receber uma ajuda dos avós para Rahula.
Nesta altura Gautama ainda não tinha planos para si mesmo. Naturalmente ele amava o pequeno filho e esperava ao menos conseguir influenciá-lo e tê-lo por perto. Não obstante com o divórcio os pais de Yashodhara assumem a guarda de Rahula liberando Yashodhara para estudar longe. Por sua vez, os próprios pais de Gautama como que adotaram informalmente Rahula, passando a tratá-lo como um novo filho, dando-lhe todos os tipos de mimo e levando-lhe por caminhos que Sidarta não aprovava.
A depender dos pais de Yasodhara o clã Sakya nunca mais veria Rahula. Contudo Yasodhara convenceu os seus pais que poderia ser bom para o menino o convívio com os avós paternos dada as boas condições financeiras de que gozavam. Não seria portanto nenhum exagero dizer que os pais de Sidarta o substituíram psicologicamente por seu filho Rahula, transferindo também para ele os recursos com que antes gastavam com Gautama.
4. A Decisão
Com isto Gautama não tinha mais recursos econômicos para tentar impor a sua própria vontade, pois há algum tempo as suas poucas mesadas haviam sido praticamente cortadas. Tudo isto representou um tiro-de-misericórdia em suas esperanças de ter alguma influência sobre os destinos de Rahula. Sua paternidade estava sendo assim castrada na raiz.
Com isto Sidarta deprimido sente-se completamente à deriva na vida. E começa a buscar novos caminhos para buscar confortar o seu coração.
Sidarta recém entrava na sua vida adulta então, e seu espírito estava inteiramente voltado para a espiritualidade. Houvera manifestado mesmo assim boa vontade para tentar ajustar-se ao casamento. Porém ele simplesmente não podia lutar contra todo o universo e nem mudar radicalmente os rumos que a sua alma desejava. Sequer podemos dizer que Sidarta teve muitas opções.
E é aqui talvez que devamos focalizar o grande cerne de toda esta questão, ou seja: nas opções que Sidarta realizou naquela altura. Gautama poderia ter tudo no mundo material caso acatasse as suas regras. Seus pais não economizariam esforços para apoiá-lo. O seu filho estava sendo usado de algum modo para puni-lo ou para pressioná-lo a rever os seus caminhos. Contudo ele também tinha a sua vocação espiritual para honrar e fez a sua opção.
Esta é uma prova clássica destinada também aos patriarcas das nações, como sucedeu a Abrahão através do sacrifício simbólico de seu filho único Isaaque. Quando Abrahão consegue provar a sua obediência, a criança é automaticamente poupada.
Apesar deste assunto todo resultar polêmico aos olhos do mundo, o qual seria até capaz de tentar relativizar as virtudes e as opções de um renunciante, o tema permanece como estandarte e um libelo em favor da primazia da opção pelo Espírito enquan-to realidade maior. Gautama estava inteiramente certo em priorizar a espiritualidade. Eventualmente ele até poderia reunir outras dimensões da existência sob o guarda-chuva do Espírito, não necessariamente nos termos como Sudodana poderia sonhar.
Aqui temos ademais um importante diferencial entre o homem e a mulher. Uma mulher dificilmente se afastaria do seu filho, e as razões são muitas. Inicialmente pelo próprio apego pessoal à pequena criatura, depois pelo fato da sociedade apoiar esta relação tão importante para a criança, e por fim porque -diretamente relacionado ao anterior- a sociedade veria com muitos maus olhos tal afastamento. Portanto seria praticamente impossível a uma mulher superar tal provação, entre outras quiçá tão árduas ou mais do que estas que também existem nos Caminhos da Iniciação.
Este é portanto o primeiro grande ensinamento sobre a natureza dos Grandes Mestres. A renúncia dos grandes iniciados vai bem além de abdicar de uma vida de luxos e de prazeres, tal como de poder e de prestígio, que o destino naturalmente lhe proporcionou -algo que todavia já filtraria 90% da humanidade. Esta renúncia inclui também resignar-se a abrir mão de uma família pessoal e amargar as dores da perda, sem qualquer culposidade pessoal. Trata-se portanto do primeiro grande sacrifício a ser enfrentado por aqueles que almejam colocar o serviço à humanidade em primeiríssimo lugar.
5. A Iluminação
Não deveríamos precisar dizer o quanto tudo isto perturbou a consciência do jovem Gautama, como o seu senso de moral foi abalado e o quanto o sentido de culpa -por menos que de fato a possuísse- o premiu por levar muito a sério os seus esforços de vida espiritual. Nos Evangelhos Jesus traça caminhos para os divorciados no sentido de se consagrarem seriamente a Deus, e Sidarta saberia disto por simples sentido interno de retidão moral.
Considerando-se que, regra geral, quase não pode haver crise maior do que o divórcio no mundo dos mortais -computa-se normalmente como um stress inferior apenas ao da guerra-, todos os outros sacrifícios parecerão daí menores. O afastamento dos filhos abala como nada alguém psicologicamente, e se a pessoa não tem um norte bem definido pode até enlouquecer, entrar em depressão ou enfermar-se. Como os despertados por Deus tem uma meta importante em vista, esta sensível perda pode lhes conferir uma determinação de seguir os seus objetivos com especial seriedade.
A partir disto Gautama passa a viver uma verdadeira “noite negra da alma”, de depressão, revolta e angústia velada. Decide passar a viver em ashrams e mosteiros realizando austeridades, inicialmente nas redondezas de sua cidade, e depois mais afastados, passando por fim a pregar os seus conhecimentos de forma errante.
Segundo conta a lenda, quando Rahula cresce sua mãe pede para que dirija-se até o Buda a fim de solicitar-lhe heranças. Este porém já nada tendo, apenas convida o filho para unir-se a ele, e assim Rahula também realiza os seus votos.
Sudodana tampouco teria ignorado o seu filho mesmo depois da iluminação de Gautama, diz a lenda, sempre tentando que regressasse ao lar. Todos os mensageiros que Sudodana enviou foram contudo igualmente convertidos pelo Buda. Passados alguns anos Gautama regressa por fim ao lar paterno para pregar ao seu pai que então aceita os ensinamentos tornando-se um Bodhisatwa segundo reza a Tradição piedosa budista.
Pois bem, nesta situação de Sudhodana insistir na volta de Gautama e este finalmente aceitar, tem-se reminiscências dos primeiros anos de buscas de Maitreya em ashrams e em viagens mais ou menos errantes pela Índia, todavia antes da sua grande iluminação, pois esta ocorrerá isto sim após Sidarta retornar ao seio familiar.
Acontece que a família de Gautama, observando que ele estava indo cada vez mais longe, e que havia aprendido a se virar sozinho, decide convidá-lo então para regressar ao seu seio, temendo quiçá que ele eventualmente desaparecesse no mundo e nunca mais se tivesse notícias dele.
Sidarta decide retorna então ao convívio familiar, considerando se tratar de um convite praticamente incondicional. Pois nesta altura ele também desejava casar-se verdadeiramente, ter uma oportunidade real de constituir um lar ou pelo menos encontrar um amor para si. A família de Sidarta tinha propriedades em diferentes locais, inclusive rurais, que ele poderia eventualmente usufruir para isto.
E assim Sidarta retoma certa “normalidade” voltando a conhecer outras mulheres em sua vida. A próprio ideia de que Gautama e Yasodhara tinham a mesma idade, pode estar ligada a outras relações importantes que Sidarta teria nesta altura.
Nada disto o impediria de seguir as suas práticas e até de passar a viver processos cada vez mais intensos, pois já houvera dado bons avanços nos anos em que praticara as suas famosas austeridades.
Até que finalmente se ilumina aos 29 anos de idade, que é a idade-padrão de iluminação dos avatares, e também com a finalidade de sobreviver às provações normalmente fatais do grau de Arhat. Longos foram os padecimentos subsequentes de Sidarta, e nisto ele teve que contar com o apoio resignado da família, pois por muito tempo ele pouco mais poderia fazer do que lutar para sobreviver.
Sidarta já havia realizado austeridades sob as mais diferentes circunstâncias, e de forma também mais ou menos prolongada, inclusive com ajuda ou a participação de terceiros. Porém agora os seus padecimentos serão bem mais longos e intensos, de modo que não haveria muitas alternativas senão contar com o apoio da própria família de uma forma mais sistemática. Não se trata obviamente de algo que ele planejou, apenas calhou de acontecer desta maneira.
Eis que após a crise de iluminação do Buda, seu pai aproveitou para dar-lhe finalmente bens, pretendendo uma vez mais que ele tivesse uma vida mais próxima do normal, e de fato Maitreya conhece novas parceiras e tem outros filhos.
A exemplo daquilo que aconteceu nos registros sobre Jesus, os biógrafos do Buda também consideraram muito complicado tratar dos detalhes sobre os seus relacionamentos com mulheres. Para eles bastou mencionar Yasodhara num suposto contexto de renúncia voluntária para passar uma ideia puritana de Gautama. Todo o resto poderia causar confusão. Esse era um pensamento comum dentro da espiritualidade negativa, divisionista e contemplativa da Era de Peixes.
Pelas mesmas razões pouco se falou dos filhos que os Avatares puderam ter tido, tudo isto para apresentar uma imagem distante e mistificada de suas existências. Krishna teve tantas esposas sem ter filhos?! Improvável. Sobre Jesus restaram apenas algumas lendas tardias relacionadas à interpretações sobre o Santo Graal. Acontece que, para as ordens religiosas o tema da progenitura dos grandes Mestres sempre representa uma situação constrangedora, porque pode conflituar com a autoridade espiritual baseada puramente no trabalho dos Mestres.
Outra razões da forte “lavagem moral” sofrida pela biografia do Buda (sem ônus moral para este naturalmente), estaria na intenção de incrementar o monasticismo que desde cedo caracterizaram as práticas budistas, ainda que desde então tem florescido também as crenças laicas da Terra Pura. Seguramente a organização das biografias budistas passaram muito pelo crivo particular das ordens responsáveis por elas, em especial o próprio Theravada enquanto corrente mais antiga e com nítido perfil monástico.
Paradoxalmente Buda e Jesus também estiveram em mosteiros, porém considerou-se inapropriado reconhecer que outras ordens poderiam ter tido a sua importância na formação do seu pensamento, por mais evidente que isto pudesse soar. Quando os biógrafos consideram que alguma informação é inoportuna mas não querem mentir a respeito, tratam pelo menos de omitir tal informação, daí temos as tantas lacunas, contradições e simplificações presentes nas biografias avatáricas.
Esta nova fase familiar de Gautama duraria uns 14 anos, quando outras crises na família e novas missões levaram o Buda a renunciar novamente a tudo e retornar às suas peregrinações. Nesta altura Gautama já era um Bodhisatwa perfeito transitando soberanamente pelos mundos do samsara. Sidarta chegara a isto trocando uma vida de luxo por disciplinas e austeridades até alcançar a sua iluminação. Contudo esta nova renúncia lhe proje-taria a uma verdadeira condição de Buda, permitindo à sua consciência abarcar também as grandes realidades planetárias com plena envergadura, e com isto alcançar finalmente todos os seus superiores objetivos. Não obstante este já seria tema para um outro estudo.
Até por isto nunca acontecerá uma reconciliação formal entre Sidarta e Sudodana. Sua mãe Maya, porém apesar de também incomodada com tudo isto, sempre deu o seu apoio naquilo que pode reconhecendo a sinceridade da vocação espiritual do filho.
Por anos a família ainda manteve a esperança de que Gautama conseguisse se posicionar social e economicamente. Porém com as grandes crises de saúde que vieram em sua iluminação, a situação mostrou-se bastante incerta. Como vimos Sidarta se ilumina sob o amparo involuntário da família, pois ele não teria mesmo outras alternativas. Aqueles que imaginam que a iluminação é apenas um mar de rosas, também ignoram o que é a verdadeira iluminação e estão confundindo com conquistas menores. Largo é o testemunho da grandeza deste desafio, porém muito esforço tem sido feito também para minimizá-lo.
Com efeito essa situação ensejaria a oportunidade de tratar de uma grande lacuna da biografia do Buda, naquilo que diz respeito aos detalhes dos acontecimentos da sua iluminação, que geralmente envolve acontecimentos muito complexos, mas que são tratados geralmente de maneira tão somente elíptica e simbólica, como sucede em torno da questão da árvore sagrada da iluminação cercada pelas tentações e ameaças que recebeu o Buda.
A visão de iluminação que terminou sendo atribuída ao Buda seria meramente aquela superficial dos místicos, e não a verdadeira iluminação ocultista com seus efeitos transcendentais sobre o indivíduo e até mesmo toda a atmosfera do planeta. Acontece então que toda a biografia do Buda foi reconstruída a partir de visões menores visando ajustar-se na medida do possível aos tabus sociais vigentes. Em função disto, por muito tempo várias versões concorreram entre si, até que se criaram os cânones pali quase quinhentos anos após a morte do Buda, provavelmente para atenuar as predições do Buda de que por esta época o Dharma já terminaria por se perder. Esta biografia “oficial” do Buda resulta porém extremamente minimalista e estereotipada, sujeita a reducionismos, distorções e simplificações.
6. Conclusões
Porque é importante trazer todos estes fatos à tona?! Acontece que estes acontecimentos são relevantes mas nem seriam tão raros de acontecer como se poderia pensar, e algo muito semelhante também aconteceu em tempos recentes com o novo Buda, conhecido como Maitreya, sendo inclusive esta referência que permite hoje conhecer mais a fundo os fatos antigos que envolveram o jovem Sidarta.
Isto é importante porque as coisas do passado sofrem deformações com o tempo, seja em função dos mitos com se busca cobrir os fatos ou mesmo por simples interpretações equivocadas das coisas.
Ou seja, o cenário mítico no qual as biografias divinas são aureoladas já traz uma capa desafiadora de símbolos e de parábolas, mas não chega a provocar verdadeira distorção e, pelo contrário, até auxilia muitas vezes a perceber melhor a verdadeira magnitude dos acontecimentos. Não obstante, em cima disto ainda existem as interpretações tardias onde distorções importantes podem ser verificadas.
Desde o começo o Budismo moveu uma grande campanha histórica contra o sistema de castas, e uma das razões foi justamente porque suas bases espirituais de ashramas ou etapas-de-vida não estavam sendo devidamente respeitadas, inclusive privando os sudras de acesso a elas. O Buda também pode conhecer em sua própria vida o quanto este sistema podia ser manipulado pelos poderosos em favor de causas pessoais e de interesses menores.
É fato que a espiritualidade escolhe os seus porta-vozes em famílias nobres, porém isto não significa que tudo ali será como um mar-de-rosas. Em muitas tradições antigas, o lar de origem dos mensageiros é um lugar de grandes reveses e conflitos. Isto vemos desde as origens com Cain e Abel, assim como a trágica família de Osíris, passando depois pela casa de Krishna e também de Rama, assim como mais tarde de Buda e São Francisco. De modo que esta situação parece quase mais uma regra do que uma exceção.
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Sobre o Autor
Luís A. W. Salvi (LAWS) é estudioso dos Mistérios Antigos há mais de 50 anos. Especialista nas Filosofias do Tempo e no Esoterismo Prático, desenvolve trabalhos também nas áreas do Perenialismo, da Psicologia Profunda, da Antropologia Esotérica, da Sociologia Holística e outros. Tem publicado já dezenas de obras pelo Editorial Agartha, além de manter o Canal Agartha wTV.
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